De onde veio Ana? Daqui.
O celular não tocava, nenhuma mensagem chegava. O único simulacro de carinho que recebia naquele momento, era o do lenço de papel que tentava – em vão – limpar o fio preto de maquiagem que escorria dos olhos.
A música alta e brega impediu que ela escutasse de primeira, a voz que a chamava:
Ana? Sabia que a encontraria aqui.
Ana olhou pra cima, mais forçando o globo ocular do que propriamente levantando a cabeça, e viu claramente o perfil de uma mulher elegante. Um belo contorno, aliás. Quem visse, certamente palpitaria que ela já teria sido miss alguma coisa. As roupas de grife atestavam sua origem, o cabelo, com um corte moderno e impecável, não deixavam sombra de dúvida que ali estava uma pessoa que sabia o que queria e tinha recursos para isso.
A realeza desceu à plebe. Seja bem vinda.
Adoraria me sentir bem vinda minha querida, mas… nesse lugar? Poupe-me.
Ah, esqueci que meus gostos não são tão refinados quanto os seus. Às vezes me iludo que por sermos iguais, possamos agir iguais.
Uma gargalhada jocosa quase encobre a música alta e brega.
Iguais? Não faça isso com você mesma, querida. No máximo, parecidas.
Ana olhava firme para a mulher à sua frente, procurando manter os últimos pingos de dignidade que ainda lhe restavam.
É que não tive a sua sorte.
Sorte não tem nada a ver com isso. São as escolhas do passado que definem nosso futuro.
E devo supor que suas escolhas foram melhores que as minhas?
Não suponha, encare. E você? Vejo que apesar de ter as mesmas escolhas que tive, continua a mesma simplória de sempre. Embora muitos tenham tentado tirar você da pobreza, não conseguiram tirar a pobreza de você.
Outro risco preto descia dos olhos. Silêncio. Até a música alta e brega parou nesse momento. Uma pausa para que um turbilhão de lembranças voltassem com uma clareza impressionante. Um lampejo vem à mente: melhor seria estar morta.
Nessa pausa, um homem alto, magro, sobretudo negro se aproxima da mesa. Ana olha para a interlocutora à sua frente, que continua impassível, parecendo nem perceber a presença do estranho. O homem de sobretudo negro deixa um copo de whisky na mesa e passa as mãos – geladas – pelos cabelos de Ana. Apenas três palavras saem da sua boca: hoje não, Ana!
O homem de negro se esvai, com a mesma rapidez que apareceu.
Ana, como acordada de um transe, volta a olhar para sua companhia, que permanecia impassível.
Ana resolve quebrar o silêncio, no mesmo momento que a música alta e brega invade novamente o ambiente.
Eu não tive a chance de um grande amor.
Novamente a risada jocosa invadiu o ambiente. Lógico que teve querida. Você não deu chance ao amor. Preferiu desperdiçar seu tempo com quem não valia a pena. Homens casados, homens indecisos, homens inseguros, homens canalhas, homens bêbados, homens indiferentes. O amor veio, sim, à sua porta. Mas você pediu que homens ocupados com seus egos atendessem à porta.
Mas como eu poderia saber?
Escolhas minha cara, escolhas. Você preferiu trocar a efemeridade de um tempo pela certeza de um futuro.
Você está sendo injusta… Eu procurei o amor. Eu fui atrás do amor.

Mas você só pensa no material.
Opa, opa, opa. Quando digo alguém que se sustente, é alguém que se sustente como indivíduo. Que tenha equilíbrio, bom humor, caráter, discernimento. Ninguém dá aquilo que não possui. E se dá, é porque roubou de outro. Adivinhe quem foi roubada? E novamente a risada jocosa invadiu o ambiente.
Ana, no auge da sua raiva joga o copo na sua companhia, quebrando o espelho. Amanhecia, a luz de fora começava a invadir o ambiente com música brega e alta.
A luz permitia ver, naquele jogo de espelhos, duas belas mulheres. Uma, maltratada pela vida, outra, deformada pelo vidro quebrado. Mas ainda, assim, duas belas mulheres, tão iguais e tão diferentes.
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Ainda fico arrepiada quando leio: “Hoje não, Ana” e sei que será assim, quantas vezes eu ler esse texto.
Sensacional, como sempre.
Fly Away
Aninha Ruiz.